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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

REFLETINDO

Rumos e desencontros

João Ricardo Correia
Jornalista

        O frio daquela noite prometia ser mais intenso que o da anterior, quando os joelhos se espancavam embaixo do velho lençol, todo remendado com pedaços de panos coloridos. Sobre a casa de quatro cômodos, gatos no cio promoviam todo tipo de desordem em busca de uma aventura amorosa. As telhas pareciam desabar em cada carreira dos bichanos atrás das suas amadas.
        No coração daquele homem de rosto talhado pelo tempo, mágoas, ressentimentos, ódios, inveja e desesperança imperavam. Para ele, a vida não valia mais nada. Quanto tempo ainda lhe restava ele nem queria imaginar; estava acomodado. Havia parado. Existia por existir. Ao lado da cama, um tamborete era o fiel companheiro, equilibrando um copo de vidro com três dedos d’água, onde repousava todas as noites a prótese dentária inferior. A superior não prestou mais depois de tantos consertos com durepoxi e outras colas apontadas pelos donos de mercearias como resistentes.
        Espalhados pelo casebre, pedaços de história impressos em roupas, livros, revistas, na coleção de chaveiros arrumada em duas folhas de isopor, no rádio e num violão já sem brilho, por onde desfilaram tantos dedos e melodias numa época tão perfeita, que parecia nunca ter fim.
        A manhã se espreguiçava, dava os primeiros sinais de vida, quando ele levantou com uma dor nas costas daquelas, lavou a boca, colocou a chapa surrada usada há três dias seguidos e saiu de casa. A fechadura da porta recebeu as duas voltas da chave. “Deus me livre de entrarem aqui e levarem minhas coisinhas”, dizia aos mais chegados.

        A
 caminhada para a movimentada avenida onde esperaria os automóveis para pastorar demorava quinze minutos. Quinze minutos para um homem com a saúde em dia. Ele passava meia hora, quarenta minutos para chegar. Nesse dia, já pertinho do seu local de trabalho, deparou-se com um garotinho franzino, pés descalços, bermuda florida, camiseta branca com mangas vermelhas. Os olhares se cruzaram e a curiosidade os aproximou.
        O rapazinho quis saber quem era aquele senhor, onde morava e para onde ia. “Não importa meu nome. Moro perto daqui e vou para onde o destino mandar”, respondeu, sem querer aprofundar o assunto com o precoce desconhecido. Mas não perdeu tempo que também quis saber quem era o jovem, que nunca tinha avistado na redondeza. “Eu moro longe, seu moço. Cheguei até aqui de carona e estou procurando um trabalho. Não sei fazer muita coisa, mas quero fazer qualquer coisa para não morrer de fome”.
        A
s histórias, embora entrelaçadas ali, por acaso, pareciam saídas de um mesmo enredo. O único cigarro no bolso do homem mais velho foi consumido nas últimas tragadas pelo adolescente. Calados, sentados no meio fio, trocavam mais informações que tantas pessoas que conversam, conversam, conversam e não dizem nada de importante. Aquelas duas figuras, que podem viver no seu bairro, na sua rua, passaram uns dez minutos ali, lado a lado, como se imaginando o que poderiam fazer dali pra frente para diminuir o caminho cheio de espinhos que trilhavam diariamente.
 
        Na hora da despedida, o velho questionou: Você não tem pai? - Tenho, mas não sei onde ele mora, nem quem é. E o senhor, tem filhos? - Tenho um, mas nunca vi, porque eu estava preso quando ele nasceu e a mãe do menino nunca me procurou para mostrá-lo. Tristes com a história um do outro, um aperto de mão confortou por um momento a solidão e atestou ter sido bacana aquele encontro, mesmo tão rápido, tão surpreendente, tão cheio de significados. Quis o tempo que aquelas duas criaturas fossem separadas e depois se achassem, em via pública, aos olhos de todo mundo. Um, distante da casinha onde “se escondia”. O outro fugindo do que considerava o “inferno”. Eles não conseguiram se enxergar como pai e filho. Não ligaram as peças do quebra-cabeça e, mais uma vez, se distanciaram. Não sem antes compartilhar um pequeno momento, um recorte sem retoques de duas vidas que até poderiam ser uma só, mas que tomaram rumos distintos.
        Assim é a vida de todo mundo. Nem sempre temos o que queremos, nem sempre encontramos que desejamos. Nem sempre aproveitamos as oportunidades que nos aparecem. Nem sempre nos aprofundamos em assuntos que poderiam mudar nossos rumos.

2 comentários:

  1. Parabens caro João Ricardo, eu era leitor assiduo de sua coluna no JH primeira edição, pena que acabou, mas gostei deste seu jornal criando pauta, continue sempre voce é um grande jornalista.
    Marcilio Pinheiro
    MP CONTABILIDADE E ADVOCACIA

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  2. esse ultimo paragrafo se encaixou bem com o que aconteceu comigo recentemente. otima historia, só um pouco comum essa coisa de pai e filho separado que se reencontra por acaso.

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